nós somos o que comemos

Via de regra, evito o estrangeirismo. Acho desrespeitoso com a nossa língua, que é tão vasta e tão bonita. Mas, quando ainda não criamos um termo que dê conta de uma ação em construção, algumas palavras emprestadas se mostram úteis. É o caso do portfólio. A rigor, um portfólio porta folhas. 

No uso comercial, este termo ganha sentido de apresentação (antes em papéis, hoje cada vez mais digitais) das qualidades da empresa interessada em vender seus serviços. 

Em educação, há alguns anos, adotamos esta expressão para nomear uma coletânea de atividades das crianças que, de alguma forma, revelam suas “qualidades” como alunos.  Na educação infantil, em particular, onde não utilizamos notas ou provas, como no ensino fundamental, as atividades escolhidas tentam compor uma “prova” do que a criança se mostrou capaz de realizar ao longo do semestre ou do ano. Mas será que há entre os educadores um significado comum para esta palavra?

Hoje, em meio a discussão sobre documentação pedagógica, procuramos estabelecer uma relação entre as ferramentas de que dispomos e o aspecto inovador deste conceito. Uma relação possível é pensar o portfólio como expressão dos processos coletivos vividos pelas crianças durante o aprender.  Assim é necessário nos perguntarmos: o que exatamente queremos mostrar com os portfólios?

Considerando que uma das funções da documentação pedagógica é dar visibilidade aos saberes construídos pelas crianças nesta vivência coletiva que é a da vida escolar e, ponderando a definição de Dalhberg, Moss e Pence (2003, p. 194) em que documentação  “é o material que registra o que as crianças estão dizendo e fazendo, é o trabalho das crianças e a maneira com que o pedagogo se relaciona com elas e com o seu trabalho”[1], buscamos nos fazer algumas perguntas para concebermos a nossa ideia de portfólio:  Como revelar o que as crianças aprenderam juntas? Como captar as interações que resultam em aprendizagens? Como fazer para mostrar os modos de aprender na infância? Como dar visibilidade às suas produções? Como colocar em foco: suas relações, suas escolhas, suas hipóteses, suas descobertas, suas alegrias? Estas são perguntas que têm por objetivo voltar à raiz do que a palavra portfólio, ou melhor, documentar,  pode significar em cada escola.

Outras reflexões nos ajudam a construir a estrutura do portfólio, por exemplo, a definição de categorias para a organização dos materiais que coletaremos ao longo do semestre ou do ano. É importante determinarmos como organizaremos as inúmeras fotos à medida que são tiradas durante as atividades. Este acervo enorme de material fotográfico precisa ser organizado de forma a estarem à mão na hora em que o educador estiver produzindo portfólio da turma.

Organizaremos as fotos em pastas por criança, ou por grupos? Criaremos pastas tendo como título as diferentes aprendizagens alcançadas? Teremos uma pasta de fotos que mostrem as relações entre as crianças, entre os grupos? E outra evidenciando as relações das crianças com os educadores no cotidiano? Uma pasta com fotos que mostram a relação das crianças com os diferentes materiais a que tiveram acesso, buscando tornar visível a relação que estabeleceram com os conceitos presentes nas experiências vividas?  Uma outra pasta com fotos que apresentem a expressão lúdica do conhecimento? Outra que evidenciem as formas de expressão da criança com o movimento ou com as marcas gráficas que produzem?

Estas são decisões a se tomar na organização deste importante material que são as fotos. A forma como ele vai ser organizado precisa responder à ideia de uma narrativa que o educador irá construir a partir da escuta e da observação dos seus alunos.

No entanto, documentar não se restringe ao uso dos registros fotográficos. Mostram-se igualmente potentes os registros que coletamos das falas das crianças, e aqueles registros que fazemos ao analisarmos as suas produções plásticas ou gráficas, entre outras. Como articular estes diferentes materiais para compor um portfólio com caráter de documentação pedagógica?

Aqui consideramos o portfólio como uma forma de interpretar o que foi vivido entre as crianças no espaço da escola.  Então, delineada uma narrativa e escolhido o material que irá ilustrá-la, nos deparamos, com o desafio de conhecer e escolher recursos para evidenciar a mensagem que o portfólio quer expressar (recursos como a aproximação da imagem no detalhe, justapor imagens sequenciais, escolher entre a opção de cor ou preto e branco, o uso de imagem de produção das crianças como marca d’água, entre outros).

Importa enfatizar que há no portfólio uma potência comunicativa a ser explorada e utilizada à serviço de documentar o trabalho realizado pela escola: quanto mais claro expressarmos a aprendizagem, mais credibilidade terá o nosso trabalho, porque maior será a compreensão do que fazemos enquanto escola de crianças pequenas.

Realizar esta potência latente dependerá das escolhas que faremos.  É neste conjunto de escolhas (estética e conteúdo; imagem e texto; manejo dos recursos de design gráfico) que poderá ficar evidente (ou não):  o protagonismo da criança, o processo do aprender, a importância das relações, o valor do caminho aberto para a cultura mais elaborada.

À medida que vamos exercitando este novo olhar, estaremos produzindo uma forma própria de documentar, e talvez nasça junto um termo, uma palavra para definir nosso jeito peculiar de falar sobre as crianças. Por enquanto portfólio está valendo.

Para continuarmos esta reflexão indicamos, a seguir, alguns textos como referências iniciais.

https://www.marilia.unesp.br/Home/Pos-Graduacao/Educacao/Dissertacoes/mendonca_cn_do_mar.pdf

http://avisala.org.br/index.php/assunto/reflexoes-do-professor/portfolios-bem-aproveitados/


[1] DAHLBERG, Gunilla; MOSS, Peter; PENCE, Alan. Qualidade na educação da primeira infância: perspectivas pós-modernas. Porto Alegre: Artmed, 2003.

 

Por: Marilene Negrini
Coordenadora Pedagógica
Espaço Criança Eurofarma Itapevi & UNIEPRE

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